23.3.14

O filósofo e a mesa da ditadura


Perguntaram ao filósofo, do alto de sua sabedoria, qual era a diferença entre a democracia e a ditadura. 

Este parou, fitou o horizonte por alguns minutos; depois, tomou mais um gole da vodka que estava bebericando. Arrumou a gravata, levantou-se solene e passou a contar-lhes mais uma das parábolas que, vez ou outra, aquele bar se acostumar a ouvir entre um gole e outro de cerveja:

"Em uma casa de família o jantar de domingo é servido. 

Cinco são as cadeiras da mesa que visualizamos: a cabeceira é do pai, que, sisudo, aprecia em paz sua refeição domingueira. 

A mãe, sentada à direita do patriarca, estende ao filho mais velho um prato, que o recebe, silenciosamente; este, que está à esquerda do pai e de frente para a mãe, se veste com camisa sóbria, de mangas compridas, e calça social, bem apropriada para a ocasião.

Ao lado da mãe, uma formosa menina, de vestido bem largo e tranças, toma sua sopa sem fazer barulho. A cadeira ao lado do mais velho se encontra vazia, mas os pratos e talheres se encontram arrumados, como se alguém estivesse para chegar a qualquer momento."



Dito isso, parou. 

Esperou que o último se calasse, tomou mais um gole da bebida transparente que o acompanhava, afrouxou a gravata e continuou:

"A princípio a imagem que contei poderia ser muito tranquila, de uma família feliz. Mas e se eu lhes contar que cada um deles esconde um segredo muito grave dos demais membros dessa mesa?

A esposa tem um amante, a filha está grávida, o filho mais velho fez uma tatuagem recentemente (e esconde um punhado de maconha no seu quarto). Quanto à cadeira vazia, é do filho mais novo, expulso de casa depois de revelar-se homossexual.

E que é sempre lembrado pela mãe, que mantém os pratos e talheres arrumados, na esperança de que, um dia, volte para o seio de sua família."

...

Diante do olhar estupefacto dos presentes, ele sorri. Bebe mais um gole da água que o acompanha, e explica a parábola a quem ainda não entendeu o que :

"Assim é a ditadura, meus caros senhores: uma grande falsidade, disfarçada pela ordem. 

O pai é o ditador, o poder dominante, militar ou civil: impõe respeito à força, possui o poder, mas não sabe do que se passa à volta. 

A mãe é o seu preposto, que age como auxiliar da ditadura enquanto lhe interessa: uma hora, quando a democracia voltar, deixará o pai de lado para ficar de vez com seu amante.

Os filhos são as diferentes faces do povo, que ora se submete à hipocrisia dominante, ou esconde seus delitos; poucos, porém, assumem o que realmente pensam, e quando o fazem são reprimidos - ou exilados, como o filho expulso de casa por ser verdadeiro consigo mesmo".

...

Terminadas essas palavras, toma o último gole, e vai saindo quando um gaiato pergunta: "E a democracia?".

Não responde, o filósofo. Está longe, já pagou a conta e vai embora. Mas voltará. 

E responderá a essa pergunta.

Um dia.


fps, 23/03, 16:48

P. S.: A tirinha foi feita depois, mas é perfeita para esse texto. Crédito ao Mentirinhas pela sacada.




20.3.14

Prosa: O desafio de escrever um poema

O desafio de escrever um poema

“O real caiu / o dólar subiu / recessão se instala entre nós
o povo sorriu / o homem cresceu / aniquilando a todos nós ...”

Que nhaca! , pensava eu naquela manhã cinza de setembro, em que o céu chuvoso fazia crer que nada de especial apareceria para encher meus olhos de contentamento. Mas, bem, era um dia chuvoso, como já disse, e, sem nada p´ra fazer além de encher-me de pálida paciência e olhar o mundo cão à minha volta, pensava no que escrever naquele dia horrível, em que nada parecia dar tão certo como deveria ...

“Ah, que saudades eu tenho / Da casa que jamais eu via
Do tempo que eu jamais tive / Da vida que nunca vivia ...”

Parecia mais chato ainda, aqueles versinhos tão chochos que eram indignos da imaginação que um homem como eu sempre tive. Parecia um tédio, um tédio infinito, daqueles que nada valiam, e que não tinha muita idéia de como terminariam. Bem, bem, voltemos ao texto - se é que ele vai sair ...

“Nos meus tempos de playboy / Ah, como isso resolvia
As mulheres ao meu lado / Os homens, na tal sangria
Esperavam que eu passasse /  A pular, com alegria ...”

Infantil, chato, piegas, tão vulgar como literatura de cordel - não que eu não goste, mas não parece sofisticado para um homem como eu. Bem, pensemos mais um pouco e veremos onde vamos chegar.

“Que tédio, que vida, que nada / Que impulso eu poderei ter
Se na vida, de tão grandiosa / Nada mais irei compreender ?”

Enfim, alguma coisa que prestou! Ainda não é o que quero, mas até aí ...

- Queridô, você não vem para a cama? Tá tão bom aqui ...

Hum ... bom estímulo para pararmos por aqui com esta estória, pois, como eu mesmo digo:

“Nada mais há melhor que a escrita / Nada mais, nada mais não será ?

Sinto muito mas há uma coisa / Muito melhor, que é o amar...”

fps, revisado e revisitado em 01/06/2013

8.3.14

Prosa: O dia da renúncia

O dia da renúncia

 
Decidiu - no dia seguinte, 8 de março, abandonaria tudo, tudo mesmo.
 
Era Dia Internacional da Mulher, o dia dela, dela e de tantas outras, portanto que se virassem os que dependiam dela porque ela ia mesmo era à festa, mulher que 364 dias passa correndo para cuidar de marido e filhos, e nada pra ela.
 
Então, bem de manhãzinha, ela saiu.
 
Saiu pelos shoppings, e pelas ruas, e pelos lugares onde o dia chegava, o Dia da MULHER.
 
Mas percebeu um negócio intrigante: em todas as propagandas, em todos os lares, por todos os lados, não se viam mulheres sozinhas, independentes e donas de si. Mesmo a independente cuida de seu corpo para conquistar os homens e invejar as outras, e o sabão em pó vende para mulheres que cuidam de sua casa; as mulheres não estavam sozinhas, estavam com seus maridos, amigos, namorados, com os homens que criticavam tanto nos outros dias e mesmo nesse também faziam - percebeu que até a notícia era requentada, e, ao ver os homens sozinhos fazendo fiu-fiu, percebeu que não dava.
 
Voltou para a própria casa, era quase meio-dia; a cama estava arrumada, ainda que mal-ajambrada, o marido ainda fez o café, e então ela assumiu.
 
Fez o almoço gostoso, arrumou alguma coisa, foram fazer compras e o dia, no final, até que foi bom, descontando o que ficou para o dia seguinte.
 
E à noite ela, caindo no sono, é que percebeu o óbvio: negava que gostava daquilo, mas no fundo gostava de ser mulher, mãe, amiga, tudo ao mesmo tempo; e que vale ter a tal da liberdade se não se pode usá-la para estar com os que se gosta e fazer o que se quer?
 
E daí prometeu a si mesma: nunca mais iria abandonar aquele inferno gostoso, nem renunciar àquilo que, no fundo, era sempre seu ...


08/03/04, 11:17

3.3.14

Poesia, de carnaval



pierrô apaixonado anda pelas ruas
enamorado de uma colombina 
que não olha seu sofrer.

e se ele não existisse?

ela voltaria para sua casa, sua vida, 
e ficaria em paz.

em paz com seus múltiplos sonhos,
seus passos, ruídos,
batidas na porta.

num toc-toc-toc incessante e insano.

ela voltaria para seus bebês, seus meninos,
seus sonhos.

seu mundo.

que não é o dele.
por mais que insista em querer fazê-lo seu.

pierrô apaixonado anda pelas ruas

ele existe. e é real.

fps, 03/03/2014, 00:36