Dos melhores "arquivos mortos" do sistema eleitoral, em tempos de CPI e que tais (e a reforma política, a maldita mãe das reformas que nunca chega), uma boa crítica de O Globo, escrita por um de seus editores:
Manter as regras
ALI KAMEL
Alguns leitores se espantaram quando disse aqui que em todos os países há inconformidade com o sistema eleitoral. E, no entanto, isso é verdade. Mesmo nas democracias mais consolidadas, há movimentos buscando reformas. A sorte deles é que esses movimentos não vão adiante. Porque qualquer novo sistema produzirá novas críticas. Mais importante do que reformar é garantir que os eleitores conheçam bem o sistema e, assim, saibam como fazer para levar ao poder os seus preferidos. Manutenção das regras, eis a chave de um bom sistema.
O que aqui chamamos de sistema distrital, adotado nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, tem sofrido toda sorte de críticas. Nesse sistema, o país, o estado ou a cidade são divididos em distritos. Para facilitar, imagine um distrito que eleja apenas um deputado. E que cinco candidatos, de partidos diferentes, concorram ao posto. O mais votado será o único eleito. No meu exemplo, suponha que, dos cinco candidatos, três consigam 20% dos votos, um, 17% e o terceiro, o vencedor, 23%. Com apenas 23% dos votos, ele representará todo o distrito. Na prática, os que não votaram nele ficarão sem representante. Imagine agora que todos os distritos do país tenham tido comportamento igual. Isso significará que, com apenas 23% dos votos, um partido terá 100% das cadeiras do Parlamento.
Evidentemente, isso é um exemplo que dificilmente acontecerá na realidade. Mas, freqüentemente, o partido vencedor tem proporcionalmente menos votos populares do que lugares no parlamento. A vantagem desse sistema é que ele é mais propício a dar origem a maiorias sólidas. Os trabalhistas ingleses tiveram 37% dos votos populares, mas ficaram com 55,2% dos assentos no Parlamento. Os conservadores tiveram 33% dos votos populares, apenas quatro pontos a menos do que os trabalhistas, mas ficaram com 157 cadeiras a menos. É democrático? É, porque os trabalhistas venceram nos distritos. Mas parte da sociedade ficou sem representação.
Há países que adotam o sistema de dois turnos: os dois mais votados no distrito voltam a disputar. Na França, o segundo turno é disputado por todos os candidatos que obtiverem pelo menos 12,5% dos votos, ganhando quem obtiver a maioria simples. Esse modelo, porém, agrava a sub-representação: um partido minoritário que tenha conseguido a maioria simples em um único distrito pode ficar sem essa vaga no segundo turno se seus adversários se unirem contra ele.
Isso é parcialmente resolvido nos sistemas proporcionais. No exemplo que dei antes, os cinco partidos elegeriam parlamentares: três partidos teriam 20% do Congresso, um teria 17% e o terceiro, 23%. Nos sistemas de listas fechadas, o eleitor vota no partido e nem toma conhecimento de quem são os candidatos. Quem dirá sempre quem são aqueles que serão os representantes do povo serão as burocracias partidárias. Se um partido tiver conquistado o direito de eleger 12 deputados, os eleitos serão os 12 primeiros de uma lista definida, antes, pelo próprio partido. É democrático? É, porque os eleitores delegaram isso aos partidos.
Mas eu não me sentiria confortável sabendo que meia dúzia de pessoas escolheu meus representantes. Isso não acontece no sistema de listas abertas, em que o eleitor escolhe a ordem dos eleitos. Os mais votados do partido são aqueles que serão os escolhidos. Se o partido tiver conquistado o direito de eleger 12 deputados, os 12 mais votados serão os eleitos. Dizem que só no Brasil e na Finlândia há sistema proporcional com listas abertas. É falso. Vários países da Europa, como Holanda e Suécia, têm listas abertas. São mais restritivas, porém. Na Suécia, o eleitor vota no partido, indicando o candidato de sua preferência. Se o partido conquistar o direito de eleger quatro deputados, os eleitos serão os mais votados desde que tenham obtido, no mínimo, 8% dos votos do partido. Se o quarto mais votado tiver obtido 6%, ele deixará de ser eleito e em seu lugar entrará aquele que o partido tiver posto na frente na lista feita antes da eleição. Mesmo que esse candidato tenha obtido menos que 6% dos votos. Neste sistema, o partido guarda boa influência.
Aqui no Brasil, não é assim. O eleitor tanto pode votar na legenda como no candidato. Os votos no partido ajudarão a dizer quantos deputados o partido elegerá, mas os eleitos serão sempre os mais votados. Vejamos o caso do Enéas. Ele teve um milhão e oitocentos mil votos e, com isso, o Prona ganhou o direito de eleger Enéas e mais cinco deputados. Quatro deles, no entanto, tiveram, cada um, menos do que mil votos. Isso é um problema? Não sei. Porque pelo sistema de lista fechada os parlamentares não têm voto algum. Portanto, nisso, o nosso sistema é parecido com o de listas fechadas, que querem adotar. Quem fica insatisfeito com essa peculiaridade ficará ainda mais com o sistema que estão propondo.
A grande desvantagem de sistemas proporcionais, de lista aberta ou fechada, é que eles respeitam as diversas correntes de opinião mas, por isso mesmo, fragmentam muito o espectro político, tornando difícil o advento de maiorias de um partido só. Como tive oportunidade de dizer, vejo isso como vantagem: é o antídoto para salvadores da pátria, o governo terá de refletir sempre um arco de pensamento necessariamente mais amplo.
Para contornar esses problemas, algumas nações adotaram o chamado voto misto: parte dos deputados é eleita pelo voto distrital e parte pelo voto proporcional. Esse sistema, porém, guarda os defeitos dos dois outros e nenhuma das suas virtudes: as maiorias são mais difíceis de serem alcançadas do que no distrital puro e as correntes de opinião continuam sub-representadas. Eu poderia relacionar aqui outros sistemas eleitorais para mostrar que todos têm defeito, mas creio que estes já são suficientes.
Nosso sistema precisa criar cláusulas de barreira e fidelidade partidária. Com isso, temos grandes chances de resolver o problema de maiorias estáveis. Acordos feitos entre os partidos terão de ser respeitados pelos deputados. Mas mais importante do que mudar as regras é fortalecê-las. Se nós tivermos instituições fortes, moral elevada, ética, uma polícia vigilante, um Judiciário zeloso, roubar, aceitar mensalão ou usar cargo público para roubar serão exceções. Não adianta mudar as regras. É preciso que elas sejam cumpridas.
ALI KAMEL
Alguns leitores se espantaram quando disse aqui que em todos os países há inconformidade com o sistema eleitoral. E, no entanto, isso é verdade. Mesmo nas democracias mais consolidadas, há movimentos buscando reformas. A sorte deles é que esses movimentos não vão adiante. Porque qualquer novo sistema produzirá novas críticas. Mais importante do que reformar é garantir que os eleitores conheçam bem o sistema e, assim, saibam como fazer para levar ao poder os seus preferidos. Manutenção das regras, eis a chave de um bom sistema.
O que aqui chamamos de sistema distrital, adotado nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, tem sofrido toda sorte de críticas. Nesse sistema, o país, o estado ou a cidade são divididos em distritos. Para facilitar, imagine um distrito que eleja apenas um deputado. E que cinco candidatos, de partidos diferentes, concorram ao posto. O mais votado será o único eleito. No meu exemplo, suponha que, dos cinco candidatos, três consigam 20% dos votos, um, 17% e o terceiro, o vencedor, 23%. Com apenas 23% dos votos, ele representará todo o distrito. Na prática, os que não votaram nele ficarão sem representante. Imagine agora que todos os distritos do país tenham tido comportamento igual. Isso significará que, com apenas 23% dos votos, um partido terá 100% das cadeiras do Parlamento.
Evidentemente, isso é um exemplo que dificilmente acontecerá na realidade. Mas, freqüentemente, o partido vencedor tem proporcionalmente menos votos populares do que lugares no parlamento. A vantagem desse sistema é que ele é mais propício a dar origem a maiorias sólidas. Os trabalhistas ingleses tiveram 37% dos votos populares, mas ficaram com 55,2% dos assentos no Parlamento. Os conservadores tiveram 33% dos votos populares, apenas quatro pontos a menos do que os trabalhistas, mas ficaram com 157 cadeiras a menos. É democrático? É, porque os trabalhistas venceram nos distritos. Mas parte da sociedade ficou sem representação.
Há países que adotam o sistema de dois turnos: os dois mais votados no distrito voltam a disputar. Na França, o segundo turno é disputado por todos os candidatos que obtiverem pelo menos 12,5% dos votos, ganhando quem obtiver a maioria simples. Esse modelo, porém, agrava a sub-representação: um partido minoritário que tenha conseguido a maioria simples em um único distrito pode ficar sem essa vaga no segundo turno se seus adversários se unirem contra ele.
Isso é parcialmente resolvido nos sistemas proporcionais. No exemplo que dei antes, os cinco partidos elegeriam parlamentares: três partidos teriam 20% do Congresso, um teria 17% e o terceiro, 23%. Nos sistemas de listas fechadas, o eleitor vota no partido e nem toma conhecimento de quem são os candidatos. Quem dirá sempre quem são aqueles que serão os representantes do povo serão as burocracias partidárias. Se um partido tiver conquistado o direito de eleger 12 deputados, os eleitos serão os 12 primeiros de uma lista definida, antes, pelo próprio partido. É democrático? É, porque os eleitores delegaram isso aos partidos.
Mas eu não me sentiria confortável sabendo que meia dúzia de pessoas escolheu meus representantes. Isso não acontece no sistema de listas abertas, em que o eleitor escolhe a ordem dos eleitos. Os mais votados do partido são aqueles que serão os escolhidos. Se o partido tiver conquistado o direito de eleger 12 deputados, os 12 mais votados serão os eleitos. Dizem que só no Brasil e na Finlândia há sistema proporcional com listas abertas. É falso. Vários países da Europa, como Holanda e Suécia, têm listas abertas. São mais restritivas, porém. Na Suécia, o eleitor vota no partido, indicando o candidato de sua preferência. Se o partido conquistar o direito de eleger quatro deputados, os eleitos serão os mais votados desde que tenham obtido, no mínimo, 8% dos votos do partido. Se o quarto mais votado tiver obtido 6%, ele deixará de ser eleito e em seu lugar entrará aquele que o partido tiver posto na frente na lista feita antes da eleição. Mesmo que esse candidato tenha obtido menos que 6% dos votos. Neste sistema, o partido guarda boa influência.
Aqui no Brasil, não é assim. O eleitor tanto pode votar na legenda como no candidato. Os votos no partido ajudarão a dizer quantos deputados o partido elegerá, mas os eleitos serão sempre os mais votados. Vejamos o caso do Enéas. Ele teve um milhão e oitocentos mil votos e, com isso, o Prona ganhou o direito de eleger Enéas e mais cinco deputados. Quatro deles, no entanto, tiveram, cada um, menos do que mil votos. Isso é um problema? Não sei. Porque pelo sistema de lista fechada os parlamentares não têm voto algum. Portanto, nisso, o nosso sistema é parecido com o de listas fechadas, que querem adotar. Quem fica insatisfeito com essa peculiaridade ficará ainda mais com o sistema que estão propondo.
A grande desvantagem de sistemas proporcionais, de lista aberta ou fechada, é que eles respeitam as diversas correntes de opinião mas, por isso mesmo, fragmentam muito o espectro político, tornando difícil o advento de maiorias de um partido só. Como tive oportunidade de dizer, vejo isso como vantagem: é o antídoto para salvadores da pátria, o governo terá de refletir sempre um arco de pensamento necessariamente mais amplo.
Para contornar esses problemas, algumas nações adotaram o chamado voto misto: parte dos deputados é eleita pelo voto distrital e parte pelo voto proporcional. Esse sistema, porém, guarda os defeitos dos dois outros e nenhuma das suas virtudes: as maiorias são mais difíceis de serem alcançadas do que no distrital puro e as correntes de opinião continuam sub-representadas. Eu poderia relacionar aqui outros sistemas eleitorais para mostrar que todos têm defeito, mas creio que estes já são suficientes.
Nosso sistema precisa criar cláusulas de barreira e fidelidade partidária. Com isso, temos grandes chances de resolver o problema de maiorias estáveis. Acordos feitos entre os partidos terão de ser respeitados pelos deputados. Mas mais importante do que mudar as regras é fortalecê-las. Se nós tivermos instituições fortes, moral elevada, ética, uma polícia vigilante, um Judiciário zeloso, roubar, aceitar mensalão ou usar cargo público para roubar serão exceções. Não adianta mudar as regras. É preciso que elas sejam cumpridas.
Agora, duas perguntas, a título de pesquisa de opinião:
1. Você acha que vale a pena discutir política ou prefere apenas fazer o jogo das "CPI caras" da vida? Vale a pena discutir política, ou é melhor falar só de literatura e dos "que tais" da vida?
2. Aliás, o que você sabe sobre os termos que estão descritos nesse texto?
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