6.10.09

Prosa

Ressaca

Durante o dia, sonhos estranhos vagueiam a vida dos homens e mulheres que vivem de noite, a cruzar o espaço de um mundo sombrio. São sonhos malditos, compostos de nuvens escuras, brilhos fortes, claros como o sol, grandiosas combinações de delírios e vontades, vidas vividas, coisas não ditas, palavras escuras, e muita emoção.

E, com ele, não seria diferente.

Havia passado a noite em claro, vagabundeando feliz e sorridente por entre os becos escuros da noite da cidade - noite esta que guarda a emoção do sorriso fácil, do grande cinismo, da vida feliz que se procura nos cantos, sem encontrá-la, sem nem ao menos achar algo que o fizesse esquecer os dias chatos que sempre vivia.

Que grande noite havia sido aquela ! Bebera, comera, de mulheres se fartara, até mesmo enfastiado estava, tanto havia aprontado, tanto havia vivido. E, ao mesmo tempo, tão só se sentia, como se lhe faltasse alguma coisa que o fizesse sentir bem consigo mesmo.

Valera a pena tudo aquilo ? Quer dizer, será que tinha sido bom ?

Olhava, dentro de si mesmo, para aquilo que era. Sentia-se vazio, apesar de tranquilo. Relaxado, talvez, seria a melhor palavra para definir seu estado de espírito, naqueles breves momentos que antecediam o raiar do sol.

A que horas teria voltado à sua casa ? Três, quatro, quatro e meia ? Não se lembrava, também não importava muito - teria que acordar, mais cedo ou mais tarde, para viver o real, o trabalho sofrido, as chagas do dia, a dureza do sol, sol que ele odiava, mas que também temia, e que o fazia sentir a necessidade de acordar.

Valera a pena ?

P´ra ele, valeu.

Pois para ele, viver era estar assim, intensamente, tentando fazer da vida uma grande loucura nas brincadeiras do destino.
   
Valeu, sim.

Outra hora, faremos de novo, e de novo, de novo, de novo, até o fim, quando tudo perder-se, e a vida se tornar, para ele, uma vaga lembrança daquilo que ele foi.

E do que teria sido, ou do que realmente foi.






fps, 04/01/96 (reescrito)

Um comentário:

Aliz de Castro Lambiazzi **jornALIZta** disse...

Você descreve gente, mas de uma forma rara. Você descreve as profundezas da gente.

Muito bom!
Beijos